quinta-feira, 24 de julho de 2008

sarah crowEST

Framework: for the wicked woman









Crítica de Margarida Oliveira

Partindo da ideia de que o espaço é factor fundamental na leitura da obra artística, a exposição “For the Wicked Woman” de Sarah CrowEST, no contexto intimista do projecto “A Sala”, dificilmente podia ter encontrado sítio mais adequado à sua apresentação.
O caminho tortuoso das ruas de Alfama, as íngremes escadas do prédio, quando finalmente encontrado, o impacto inicial sobre a sala de estar, transformada em sala de exposição, condiziam. O ambiente muito próprio da zona nuclear de Lisboa como que anunciava a natureza da primeira mostra do trabalho plástico da australiana Sarah CrowEST, vinda pelo curto período de um ano frequentar a Maumaus, escola de artes visuais cujo renome lhe chegou aos ouvidos. A “soirée” pretendia, pois, aproveitar a última oportunidade, antes da despedida, para mostrar obras anteriores mas, também, para beneficiar do olhar da artista sobre “nós” e sobre a experiência em território luso.
A atmosfera concentrada da mostra, desgarrada de laços institucionais, contraposta às práticas expositivas ditas «convencionais», ia ao encontro das preocupações e circunstâncias pessoais dos espectadores presentes – professores, colegas, amigos e interessados – admitindo-se, naquelas circunstâncias, alguma aversão a opiniões críticas que, agora, ensaiamos contrariar. Assim, apesar do contexto propício à lisonja, talvez se deva começar por interpretar em duas partes aquilo que estava disposto n’ “A Sala”, partindo desta distinção meramente instrumental, para caracterizar alguns aspectos, nomeadamente aqueles que dizem respeito à incursão no “país”.
Em primeiro lugar, uma série de doze fotografias a preto e branco, de pequeno formato, dispostas simetricamente nos dois lados de um canto da parede branca. Estas imagens, da série “Occupational Therapy”, em que a artista surge fotografada com um semblante dramático e, por vezes, violento, lembram o mundo cinematográfico de Pedro Almodóvar, em películas como “O que fiz eu para merecer isto?!!” (1988), entre outras. Tal como nelas, onde o mundo feminino é explorado intestinamente, aqui também a artista nos sugere personagens neurasténicas, à beira do precipício, carregadas de uma intensidade comovente e, quase sempre, com fundos têxteis. Não parece, contudo, tratar-se de auto-retratos, antes encenações, algo muito presente na escola finlandesa de Helsínquia, a TaiK, que formou artistas como Aino Kannisto e da qual CrowEST parece ser, indirectamente, tributária.
Um mais cáustico foco de atenção situava-se noutro canto da sala. Aí, numa mesa banal, repousava uma série de artefactos populares coloridos – dois típicos falos em loiça das Caldas da Rainha servindo de vaso a cravos vermelhos de plástico, e um falso chouriço. Tudo assente em naperons. Aí também, uma escultura da artista, num duvidoso mas adequado azul “cueca”, pontuado por flores de cor rosa, oscilando simbolicamente entre a forma de crucifixo e a de falo. Este arremedo de altar kitsch culminava com uma fotografia da artista, penteada e retratada numa chafarica da especialidade, parecendo revezar a imagem de uma Santa. A gargalhada espontânea, provocada pela conjugação destes objectos, relembra-nos a máxima “Ridendo Castigat Mores” – rindo se castigam os costumes – numa possível acepção crítica da artista aos artefactos religiosos vendidos em Fátima, que aqui são substituídos por estas profanações “made in” Caldas.
Dispersos pelas paredes da sala, outros apontamentos igualmente caricaturais de uma certa portugalidade completaram a instalação: duas pegas – uma em lã adquirida pela artista e outra, cozida por ela e pintada de branco (à semelhança das figurinhas de tecido recorrentes na sua obra); outro chouriço de faiança displicentemente pousado no contador da luz e uma caixa jacente no chão, onde se lia “Lucky Dip” e se “pescava”, através de um estreito buraco, com a mão por vezes receosa, presentes como o Ipod da artista, os seus rebuçados preferidos ou uma obra à escolha, de valor já estipulado.
Ainda que perfeitamente integrados na obra anterior da artista, que já possuía um forte carácter de manufactura, a aproximação feita a um universo cunhado de referências portuguesas, nomeadamente bordalianas, remete para a atmosfera da tão badalada Joana Vasconcelos, que vem desempoeirando costumes portugueses, há já alguns anos. Mais distante, mas também na memória do “crafty”, está a obra da francesa Annette Messager. CrowEST cola-se, sem contemplações ou pudores, antes em abordagem instintiva, às mitologias locais, onde encontra afinidades formais semelhantes aos seus “bonecos” feitos de espuma e meias comparáveis a ícones japoneses, presentes em algumas fotografias como testemunhas de óbito, também eles críticos de uma certa sociedade alienada em conflito com o corpo.
No urdir do trabalho da artista australiana, o passeio pela portugalidade, expresso nesta ostentação saudosa e nos limites do gosto, é assumido como um excesso, para nós já fora do prazo de validade, que futuramente será reabsorvido pela consistência da obra de CrowEST. Entenda-se, portanto, esta mostra com a bipolaridade que lhe foi aqui atribuída: por um lado, fotografias que dão a sentir a essência da obra da artista; por outro, um trabalho de esquisso, semelhante a um esboço realizado sobre um romântico caderno de viagem, no qual se atenta em costumes aborígenes.
Sarah CrowEST parece ter-se deixado seduzir, tendo deixado expressas as impressões do contacto com o Outro nesta profanação Pop pautada pela indiferenciação entre “High” e “Low Art” (Clement Greenberg, 1939) e por uma repescagem “ready-made” de objectos da cultura kitsch portuguesa. Fica no ar a pergunta: que consequência futura terá efectivamente esta incursão na obra andarilha da artista Sarah CrowEST?�
Margarida Oliveira




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